
Começa a crescer em mim, outra vez, aquela sensação
libertadora. Outra vez, um desejo de retirar da estante o Victor Hugo, tirar-lhe
a poeira e pôr-me a, enfim, saber o que acontece com o Jean Valjean, ou comigo,
não sei. De miseráveis que fomos, o Jean, o Victor e eu. É que tudo vai tomando
o seu lugar, o devido; de onde não deveria ter dado brecha à tamanha
vulnerabilidade. Este tudo, que andou bagunçado depois que você veio aqui,
começa a querer outra vez me restar, me viver, me sorrir e trazer de volta.
É que aquela vontade de te encontrar, escafandrar alguma
alegria no seu fundo, talvez verdadeiro, talvez duvidoso, tornou-se difusa no
decorrer da calma toda que absorvi ao seu [não] lado, enquanto o seu rosto se
desfigurava no castanho claro dos meus olhos, e você, entre os meus dedos, que
iam meio fechados, meio querendo abrir-se, me escorria porque não me pertencia.
Perdi-me dessa sombra que nem tem mais cheiro, que perdia o timbre da voz
enquanto meus lábios já nem gozavam mais do gosto que me tiveram os seus.

À noite eu me deito e não é mais seu rosto que me embala
o sono. Era ainda o seu nome, era ainda a sua ideia, mas não mais o seu rosto,
que além de desfigurado na minha retina, sumiu, também, no emaranhado dos meus
muitos devaneios de longo tempo já pensados, vai ver vividos.

Os livros na estante, todos eles, recobram de pronto toda
a importância que sempre tiveram. Recobram a força, aquela com a qual sempre me
arrancaram lágrimas ou dentes à mostra. E deles, eu nunca devia ter me
desprendido. Não dos livros na minha estante, não dos meus faróis em mares de
onda e sombra. Foi-se a poeira das preciosas páginas, foi-se a fuligem do
abrandado coração, como parei de assistir a novela que eu andei tentando
escrever; a emissora rejeitou o argumento, abriu mão do sentimento que eu tentava
incutir nela.
E agora aqui, sem a novela, volto aos livros sem cautela,
páginas frescas, amarelas como a flor no meu jardim.
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