terça-feira, 13 de novembro de 2012

O palhaço e o príncipe



As maças voam das mãos do palhaço para o alto e vibram vivas do ardor de um fogo arguto, cuidando em ludibriar olhos do atento arauto e o palhaço ri seu choro mais astuto.  Perdido em fingir que ri e que não chora, o príncipe aplaude um ato que nem vê. Olhando atento, aplaude a contento, aplausos aos olhos que lê. Mais a dúvida insiste, penosa e vermelha, se a lágrima no rosto é de tinta, é de sangue, dispara a centelha. O choro é da arte ou era do artista, que na pantomima escondia amor? No rosto percebe um sorriso que à boca escapa. Seus lábios, então, dançam iguais. O príncipe tonto, encantado do pranto, entusiasmava-se na dor. Era só um recado, um convite calado a mais uma história de dois.

No tempo oportuno, se esgueiram no canto e enamorados não espiam os ombros. O palhaço sem a maquiagem, o príncipe sem roupas pomposas, se abraçam limpos e nus de qualquer sentença vergonhosa. É que cantam no canto, o príncipe e o palhaço, quietos, bem baixo, porque só assim podem. É que cantam no canto, o palhaço e o príncipe, quietos, quase mudos pra que não incomodem. Trocando olhares qual juras de amores, olhando-se ofertando flores, se tocam de lábios em beijos amados enchendo um ao outro de cores. Os corpos se apertam querendo fundir-se, palhaço e príncipe, num só.

E nem desconfiam que olhos sedentos estejam a tramar desencantos. E inquisidores, os olhos do clero anseiam encontrar os do rei. Com plano traçado, segredo de Estado, enforcar o palhaço plebeu.

Então descobertos, muito desespero, o palhaço sai de malfeitor. A praça lotada: “Coitado do príncipe! Caiu na falácia de um contraventor. Fingiu-se amigo, fingiu-se artista, mas era o pior pecador. Pois justo que pague, que pague, o párea, a concupiscência com a dor, a libertinagem com a corda, pecado nefasto com ardor. Os pés que o levaram a caminhos sórdidos, justo é que pisem o ar, enquanto a cabeça pendendo de presa o arraste da vista de vez.”

E o tão sorrateiro moinho vermelho ali também se levantou, triturou os grãos do desejo festeiro que o palhaço muito alimentou. O príncipe chora e não esconde a cara agora que tudo é horror. E lá moribundo, em cima de um banco o palhaço que ele tanto amou. Queria gritar, dividir a sentença, chamá-lo do nome que tinha em segredos. Mas o palhaço contente, dispensa arremedos, baixou a cabeça, aceitou. Feliz ele era pois era o que ia, novas fantasias, levando consigo o amor.

O palhaço encara o príncipe e seus falantes olhos se põem a conversar. Os do palhaço dizem sossego, os do príncipe a se desesperar. Mas descansam na suave promessa de que, um dia, voltam a se encontrar pra viver a história bonita que aquela praça, hoje, ia enforcar. Os do palhaço pedem que fique, o tanto possível que conversem, mas carrasco retira o banco, gritam desespero até que emudecem. O príncipe, então, fecha os olhos e nunca mais os volta a abrir, se mudos os olhos do palhaço, não há mais nada que ele queira ouvir. 

sábado, 10 de novembro de 2012

O pó é silêncio


O resto é silêncio. É também o noc-noc dos sapatos como que de passos jogados, arrastados a contra gosto; o snif-snif da coriza inevitável, ali e aqui; o surdo tapinha nas costas enquanto crispa os lábios em apoio. Mas o resto é silêncio. A passeata silenciosa que marcha de aperto no peito, marcha sem querer chegar. Acompanhando o último trajeto, assistindo o carrinho fazer suas curvas, a manobra, a última manobra. O coveiro dando instruções, dizendo a direção, frio, corriqueiro. A dor alheia é a varanda da sua casa. É onde frequenta, o que mais visita e desconhece. Empurra as flores, as amassa, despetala-as. Brutal e mesmo, rotina de seus dias, ficar lá para o adeus. Bem, sabemos não se abrir ali dentro os sorrisos que antes nos foram abertos, que os olhos, ali, fechados não têm mais o brilho da vida, mas ele podia ter um pouco mais de compaixão para com as flores que levamos, estas também ceifadas. Nós que marchamos passo após passo, de coração comprimido entre os nossos braços dados. Abobalhados diante da majestade, a vida. Espectadores de mais este espetáculo que nos assalta, impotentes, em silêncio. Mais essa volta completa. E só nos resta o respeito, os murmúrios, olhares; e olhares avermelhados. O coveiro joga o cimento, tampa para sempre, veda, cela o destino. O cimento trancando o que amamos. Como amamos se vamos embora deixando ali naquele lugar horroroso? Os coveiros cimentando, as vozes tornando-se estridentes, o desespero rasgando o dia, as pernas tremem, você perde o tino; é catarse. Silêncio e catarse. Morreu. Foi-se e agora há cimento trancando para sempre. Meu Deus, lá dentro, o resto é silêncio. E você chega a casa e tem sempre um a perguntar o número da sepultura a fim de cercá-lo pelos doze.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Viação Canela


Saí a procurar por ela em bares onde estivemos juntos e procurei também nos adjuntos. Ela não estava lá.  

As outras que havia não eram ela e eu não as queria. Punha defeitos de minha covardia largado num balcão... 

Tomei o último gole e acendi meu último cigarro. Tateei nos bolsos por algum trocado e não achei nenhum. 

Teria de ir andando: todo o dinheiro eu gastei fumando. Mas se comigo ela estivesse, eu andaria feliz.

Viação Canela! Sigo pra casa só pensando nela, nos momentos que nós vivemos juntos nas noites de verão.  Já não vou sozinho, sua lembrança me faz um carinho. Meu coração se enche de ternura: ela está aqui. 

E sem que eu sentisse, chego à casa quase moribundo. Minha mãe me chamando vagabundo. 

 "Não adianta nem dormir. Pois já é muito tarde e sem demora sai o galo e canta e é aí que tudo desencanta um amor juvenil." 


Bebi café amargo e afanei do velho um cigarro. Pedi a minha mãe clemência e alguns trocados e ela me disse não. 

De novo ir andando: todo o dinheiro eu gastei chorando. Mas se comigo ela estivesse. Eu andaria feliz. 

Viação Canela! Sigo pro trampo só pensando nela, nos momentos que nós vivemos juntos nas noites de verão. Sei que estou sozinho.  Triturado no vermelho moinho. Meu coração rumina amarguras: ela não está aqui. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012


O que é o amor senão um poço de ideias? Um jogo de resta um do qual você é o remanescente. Restou no fim da festa a desgrudar chicletes do tapete, catando os copos sujos, juntando os quebrados. Restou você no fim da festa, o um, aniquilado, pra quem a bagunça sobrou de limpar.

Pois que se levante!

Não faça corpo mole.




Dê-se a labuta de lavar a própria casa. Deixá-la habitável de novíssimos odores. A festa até foi boa, mas se deu trabalho organizar, mais ainda desfazê-la. Sai mais cara a emenda que as poucas horas de estrela. E você de esfregão desanimado, ora esponja bem cansada, movimenta-se em favor da novidade. Tornar a ver o chão oculto em álcool derramado, aquele que antes te deu belos pesadelos.





Pois que levantado.

Não faça corpo mole.

Tire os olhos da rota que traçaram, tire seus pés dos ares que tramaram. Tome remédios contra a dor de sua cabeça. Não ouças as músicas que sonhos embalaram. Pois do amor, poço de ideias, resta um, remanesceu você assim – pobre coitado.

E, de vagar e sem vontade, levantado,

                                                      Não faça corpo mole. Não se renda ao encantado.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Há muito tempo nas águas da Guanabara...




            Elis, você pra mim nunca esteve, era sempre quadrada de relembrada. Não vivi os teus ares, mas seu cheiro me chega ainda pelos ouvidos. Sua dor, a fingida e a doída não encantaram meus olhos livres, mas me chegam pelos ossos quando vibra a tua voz no meu estéreo. Minha garganta não pôde gritar teu nome, nem te gritar o diva que lhe era, é, propício, mas ela pode cantar-te, repetir cada uma das suas lágrimas, cada uma de suas ironias enquanto brincava, digo, cantava.
            Você me chega pelo boca a boca com pessoas de idade, e eis minha fonte favorita: a idade dos que te viram; vem chegando, ora, pelo rádio do vizinho, ora, pelo arquivo enquadrado revivido todo Janeiro – como que querendo lavar o novo ano, nos preparar pra ele ou nos lembrar que é apenas mais um começo de ano, aceitando o fardo e voltando pro jogo. Agora, você broadcast yourself direto pra mim na hora em que a gente se chama no canto pra conversar baixinho, gritando, em lágrimas, em sorrisos e sorrisos largos. Eu invadiria seu palco, te garanto. Ia querer te abraçar e reconhecer o seu cheiro direto na fonte dos teus muitos cabelos.
            Ai, Elis. Elis Rainha você meche comigo até o pescoço; eu nem sou católico, mas me sinto um romeiro quando andamos pela rua lado a lado; não sou esotérico, mas sei que já está escrito, já está previsto; sou de quebrar o meu tamborim quando ninguém se anima conosco. Elis, Elis, a flor cor de rosa no cabelo, o batom vermelho, o falso brilhante. A sonhada goiabada cascão com seu muito queijo, o doce de pimenta revirada no tapete atrás da porta. Depois das cascatas rubras, do pau de arara e do rabo de foguete, dos homens com as ferramentas, retornarmos do show de todo artista bêbados, desequilibrados, mas de chapéu coco. Aqui ainda é pau, Elis, ainda é pedra. As águas dos marços até reabriram o verão, mas é muita patrulha e bagunça, que os outros onze parecem fechá-lo.        
            O fato é que o mar é uma gota, Elis, comparado ao que me molha quando ouço as tuas sensações, mas que malandro sou eu pra ficar dando trela pra quem já se foi? Aí, é que eu digo: em mim você não foi, não vi isso acontecer. Você talvez seja a outra Elis, talvez minha, talvez de todos os outros que te viram de olhos de vidro. E assim, você sempre será a que chega acenando pelo amar trazendo alegria as minhas regatas, anunciando que é com esse que vamos até cair no chão.

domingo, 21 de outubro de 2012

Escuro


Tudo em volta fede e se irritam as narinas
O céu que não impede se desmancha em ruínas
Em desvarios torpes se enriquece às minhas varizes
Cuidado! Não me poupes quero dias mais felizes

Tudo em volta fede e se irritam as narinas
O Sol que nos derrete nos renova com vacinas
Recarregando pilhas penso eu que estou dormindo
Acumulando milhas redefino o que é lindo

No escuro de tudo isso, não vejo nada.
No escuro em que me encontro,
A minha vida é minha vida é uma piada.

No escuro de tudo isso, não vejo nada.
No escuro em que me encontro,
Reza a lenda imaculada.

Eu compro minha crença num stand em feira fera
Assumo minha doença: Cinderela que espera.
Sentido para a vida coisa que já não questiono
Vivendo pra comida d’alta roda eu sou mordomo.

Eu compro minha crença num stand em feira fera
Evito desavença.Clamo pela nova era.
Sou platéia de tudo e é mim que a conta vence
Eu obedeço mudo sem que haja o que compense.



terça-feira, 16 de outubro de 2012

Os livros na estante


Começa a crescer em mim, outra vez, aquela sensação libertadora. Outra vez, um desejo de retirar da estante o Victor Hugo, tirar-lhe a poeira e pôr-me a, enfim, saber o que acontece com o Jean Valjean, ou comigo, não sei. De miseráveis que fomos, o Jean, o Victor e eu. É que tudo vai tomando o seu lugar, o devido; de onde não deveria ter dado brecha à tamanha vulnerabilidade. Este tudo, que andou bagunçado depois que você veio aqui, começa a querer outra vez me restar, me viver, me sorrir e trazer de volta.

É que aquela vontade de te encontrar, escafandrar alguma alegria no seu fundo, talvez verdadeiro, talvez duvidoso, tornou-se difusa no decorrer da calma toda que absorvi ao seu [não] lado, enquanto o seu rosto se desfigurava no castanho claro dos meus olhos, e você, entre os meus dedos, que iam meio fechados, meio querendo abrir-se, me escorria porque não me pertencia. Perdi-me dessa sombra que nem tem mais cheiro, que perdia o timbre da voz enquanto meus lábios já nem gozavam mais do gosto que me tiveram os seus.

À noite eu me deito e não é mais seu rosto que me embala o sono. Era ainda o seu nome, era ainda a sua ideia, mas não mais o seu rosto, que além de desfigurado na minha retina, sumiu, também, no emaranhado dos meus muitos devaneios de longo tempo já pensados, vai ver vividos.

Os livros na estante, todos eles, recobram de pronto toda a importância que sempre tiveram. Recobram a força, aquela com a qual sempre me arrancaram lágrimas ou dentes à mostra. E deles, eu nunca devia ter me desprendido. Não dos livros na minha estante, não dos meus faróis em mares de onda e sombra. Foi-se a poeira das preciosas páginas, foi-se a fuligem do abrandado coração, como parei de assistir a novela que eu andei tentando escrever; a emissora rejeitou o argumento, abriu mão do sentimento que eu tentava incutir nela.

E agora aqui, sem a novela, volto aos livros sem cautela, páginas frescas, amarelas como a flor no meu jardim.