sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Jardim da Estação


João Superis regava o suntuoso jardim de liláses que dava importância à magnífica faixada da sua casa no Jardins. Ele podia atrazar-se para o trabalho, não dar atenção à mulher ou negligenciar o desenvolvimento dos filhos, mas nunca cogitava a ideia de deixar de lado o suntoso jardim de liláses que dava importância à magnífica faixada da sua casa no Jardins. Afinal, a chegada da estação das flores anunciava também a chegada da inspeção dos jurados da Revista Jardins e Faixadas, que julgariam e elegeriam, entre a alta roda paulistana, o Jardim da Estação; os nervos de João vinham sempre à flor da mais alta pele, pois um dos jardins favoritos ao título era o suntoso jardim de liláses que dava importância à magnífica faixada da sua casa no Jardins.

O jardim de Superis liderava as pesquisas de ibope em todos os jornais do país, ora essa, o concurso atraia os olhos de todos os brasileiros, do mais rico ao mais pobre, e a maioria dos expectadores estava torcendo para o suntoso jardim de liláses que dava importância à magnífica faixada da sua casa no Jardins. O ego do dedicado jardineiro amador se inflava e se regozijava com as notícias e a possibilidade cada vez mais possível de ganhar o prêmio com o suntoso jardim de liláses que dava importância à magnífica faixada da sua casa no Jardins. Contudo, as liláceas, muito bem cuidadas com a dedicação de alguém que as amava, tiveram de deixar de se inflar tanto assim, pois ao suntoso jardim de liláses, que dava importância à magnífica faixada da casa no Jardins, veio se achar um rival de peso. Era um jardim inusitado, descuidado de quase tão abandonado: um jardim de daninhas, magnânimas daninhas que davam um aspecto rústico e deixado de lado a um imponente casarão desabitado ainda no Jardins.

Os jurados estavam vindo de uma cercânica logo perto e se depararam com aquela magnitude do acaso, da mãe natura e dos excrementos de incetos e só, ficaram abismados ao notarem a beleza de um jardim de daninhas, magnânimas daninhas que davam um aspecto rústico e deixado de lado a um imponente casarão desabitado ainda no Jardins. Os jornais ávidos por darem o que falar, comentaram em letras grandes de primeira página: “O Jardim da Estação”. E no subtítulo eles escreveram o seguinte: “Surpresa! Um jardim de daninhas, magnânimas daninhas que davam um aspecto rústico e deixado de lado a um imponente casarão desabitado ainda no Jardins começa a mudar a opinião pública a respeito do suntoso jardim de liláses, que dava importância à magnífica faixada da casa no Jardins.”

João Superis extranhou tal notícia e até foi grosseiro com sua assintente naquela manhã, a assiste ficou perplexa, em muito tempo não era tão furiosamente destratada pelo patrão, que esbanjara bom humor desde que se tomava como campeão o suntoso jardim de liláses, que dava importância à magnífica faixada da sua casa no Jardins. As pessoas todas, agora, na verdade, estavam encantadas com a naturalidade com a qual havia se dado àquela maravilha do mundo, em forma de erva daninha. As pessoas estavam muito interessadas numa história de ver o belo nas coisas que geralmente se custuma a tomar por feio. Quebrar com conceitos envelhecidos e coisas assim... Afinal ninguém pode decidir o que é belo ou que não é.

João não conseguia suportar que aquela brenha fúfia fosse capaz de destruir tudo pelo qual ele batalhou. Não podia vir assim, do nada e sem dono, para dar fim ao sonho de toda uma vida: cultivar e encher os olhos do mundo inteiro com o suntoso jardim de liláses, que dava importância à magnífica faixada da casa no Jardins. Porém parecia vir sim, assim, do nada e sem dono, bem mesmo, o jardim de daninhas, magnânimas daninhas que davam um aspecto rústico e deixado de lado a um imponente casarão desabitado ainda no Jardins.

O resultado da eleição foi bem mantido em segredo, afinal, com todos os veículos de mídia se preocupando em saber qual seria o resultado afim de publicar primeiro, era de se esperar que a “Jardins e Faixadas” também quisesse ser o primeiro meio a noticiar o vencedor. E a capa da edição do último mês da primavara vinha estampada com um jardim de daninhas, magnânimas daninhas que davam um aspecto rústico e deixado de lado a um imponente casarão desabitado ainda no Jardins. E na manchete se lia em amarelo vivo: “O que é, realmente, o estética mente o belo?”.

Mas Nietzsche chamou Kant de idiota!

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Eu


Este sou eu. E no meio da minha bagunça eu não quero que ninguém me defina. Eu não dou essa autoridade. Dou igaul autoridade aos que possam querer me dizer quem eu sou. Pois eu sei muito bem quem eu sou: eu sou exatamente aquilo que, no meio do infito, no meio do caos, da bagunça do mundo, eu posso entender como meu.

Apartir do que é meu eu posso ver o que sou eu. Aquilo que gosto, que amo, adoro, é o que pode deixar a minha marca no mundo. Meus prazeres são o que vai dizer que no fundo, desse baú velho de mil coisas que posso ser, há algo que só eu sou. Mesmo sabendo que para ser eu, sou obrigado a depender de você.

Nesse turbilhão de coisas: meu relógio, meus incensos, Scotland Yard, fone de ouvido, Jogo da Vida, Uno, o curativo transparente, minhas moedas, minhas cartas para quem amo, um pregador, minha Compactor 07, as músicas amadas, minha velha camisa do Flamengo, eu me vejo. Como se olhasse para um espelho e, num espelho, não vejo nada além de mim.

É bem verdade que muitos têm todas essas coisas, mas um vascaíno tem tudo, menos a camisa do Flamengo. Ou alguém que não tenha um relógio, um incenso. Tudo, no meio de quem sou é muito banal e comum a toda a massa, mas a combinação é minha e me faz mim a cada vez que me combino, que escolho as minhas escolhas. Mesmo que sejam escolhas comuns, não se farão como se fizeram antes por outras pessoas e ainda vale a máxima de Heráclito.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A valsa dos lobos uivantes


E de dançar se vai a vida tão valsante. A grande valsa que é dos lobos mais uivantes. Que já dos gregos, dos romanos, ultrajantes. Que é do Àquiles tão bem como do seu Pátroclo. E cai a noite em seu luar mais desvairado, que invade tudo com seu dom tão prateado, e ninguém pode já dizer quem era antes, identidade se perdeu já não se sabe. Não tem olhar, não tem a voz, não tem mistério. Só tem o passo e não se pisar nos pés.

Escorre a valsa que dos lobos já uivantes, buscando o néctar que há por entre troncos. E se dançar que se dançando tão dançantes a não errar um só mandato da cartilha. Se vai pra lá, se vem pra cá e a noite rompe, não mais mistérios, não mais segredos que o dia esconde.

E de joelhos, ajoelhados, tão cristão, abrindo a boca pra pedir que, do céu, mande, o brando gozo que alegrará, uivantes, os lobos pobres tão polidos a dançar. A boca aberta esperando o deus que venha e lhe aprazer e lhe entregar a recompensa, o manar que vem do alto e que não falta, aquele mesmo que não se deve armazenar. E sorri, feliz que sorridente. Não mais espera, agora sim já pode ver. O deus que veio, que já não mais a vir, agora veio e se faz vez de engolir. O lobo uivante faz calar o seu uivado. Se põe sossego e não mais atormentado. E já não dança, antes vai-se bem do baile. Já valsou, o deus já veio e aleluia.

A valsa é boa, é gostosa e chama mais. Ela vicia e tão logo quer de novo. A sede aumenta e só sabe em demasia. Escraviza o lobo que não sabe dizer não. Ele não quer, mas uivar é natureza. E não se prende a natureza, não. Essa não nasceu pra se dobrar ao que, de dia, dizem, mas sim pra deixar que a noite mostre o que é seu. E tão sedentos, pois a sede não a acaba, os lobos voltam a uivar bem pela areia, o mar cantando e as estrelas segredantes, não contam ao sol o que, à noite, vem a ver.