
Na volta pra casa, ele tem que tomar duas conduções, já
bem complicado o destino do moço. Daí, com pouco dinheiro, doido por um
cigarro, suprime uma das duas e compra uns quatro cigarros a varejo. Precisa
botar algumas ideias em ordem, pensar em alguns enquadres, coisas que quer
escrever, contar aos outros, coisas que quer imaginar só por fazê-lo. Uma
caminhada de meia hora jamais lhe faria mal. Coitado de pensar assim.
Daí,
segue, fumando seu passo rápido de cabeça na lua e num outro rapaz. Cruza umas
gentes e segue contente até que:
“Aí,
playboy.” Pronto! E nem terminei de pagar o celular ainda. “Com todo respeito,
me arruma um cigarro seu aí.” Ufa, não é um assalto, é só mais um descamisado
querendo tragar.
“Po, cara. Só tenho esse, comprei a
varejo ali em baixo.” E se eu te der um cigarro meu, ele deixa de ser meu,
compreende?
“Aí, deixa eu dar a vinte, aí.” Puxa
vida! Que inconveniência. Que vida mais dura, que ser mais pidão.
O moço
deixa a vinte, não antes de uma boa traga, e segue seu rumo se pondo a pensar
até que:
“Oi,
você sabe onde fica o Hospital de Olhos.” Tudo bem, tudo bem. Só uma tonta
perdida que nem sabe onde ta.
“Olha,
segue reto até um supermercado verde e lá você torna a pedir informação.” Se
quiser, dobra a esquina, isso. Logo ali, na puta que te pariu.
“Ta.” A
desgraçada nem agradece e ele segue andando, pensando no sonho, no que tenta
ser, criando, criando e tentando esquecer até que:
“Mininu.”
Mas que cacete! Todas as pessoas do mundo vão falar comigo hoje?! “Que horas
tem?” Essa gente não tem noção de polidez? E onde fica a história de minimizar
o sofrimento do outro. Não, porque ser interpelado na rua por um desconhecido é
um sofrimento, ser tirado de si mesmo com tamanha brutalidade é um peso que
precisa ser minimizado, tipo, com licença, pode – “poderia” seria pedir demais –
me dizer as horas? Pelo menos, ora!
“To sem
relógio.” E se a tal vovó fosse uma isca pra assalto, tipo sondando qual era o
seu aparelho celular.
Ela nem
responde. Ele continua, tenta voltar a pensar nas coisas. Acende o segundo
cigarro e vai andando, seu passo fumante, soltando fumaça, gozando uma paz, até
que:
“Ai,
acende aqui um cigarro.” Bem pelo menos essa queria só o isqueiro. Não fazia
tanto mal, mas que inferno de fumante que não anda nem com um caixinha de
fósforos?
Ele vasculha o isqueiro no bolso, finge
olhar pro lado e o entrega à mulher.
“Brigada.”
Hum, ela sabe agradecer. Vai arranjar um bom marido!
Lá vai
ele, tentando lembrar exatamente em que estava pensando antes da última interrupção
e, sem sucesso, desiste pois não devia ser nada importante mesmo. Segue com
novo pensamento, muito rápido se entretém sozinho, num instante recria novelas
próprias de si mesmo e lá vai de novo, no rapaz, o pensamento até que:
“Meu
amigo, tem como você me ajuda?” Mais o quê agora?
Ele para
fingindo-se atencioso.
“Poxa,
eu fui assaltado, levaram meu celular, deram uma coronhada na minha cabeça...”
Ai pede logo pra eu dizer que não tenho e seguir meu caminho. “... e eu vim
aqui visitar minha tia no hospital e agora nem tenho dinheiro pra ir pra casa,
eu to tentando juntar o dinheiro da passagem pra mim ir pra Magé. Tem como você
me ajudar.” Ai, meu Deus, coitado, todo mundo pode ser assaltado e ficar a pé.
Assaltante filho da puta, assaltar pobre é sacanagem, mas:
“Po,
cara, nem posso te ajudar. Também to andando porque to sem dinheiro...”
“Po,
valeu aí.” E se vira com cara de choro pra abordar o próximo passante.
Volta ao
seu caminho tentando mais uma vez organizar suas ideias, já esquecendo do
último encontro e vai começando a respirar aliviado e pensa e conjetura, tenta
brincar de flâneur até que:
“Oh,
jovem.” Ai, caralho, mais essa. “Você conhece a palavra de Deus?”
Putz!
Que tem Deus a ver com isso. Só queria chegar a casa, conseguir passar daquela
feira, que antes parecia só uma avenida.
“Você
sabe que Jesus morreu pra salvar a sua vida?”
“Sei,
irmão. Já entreguei minha vida a Ele. To fumando ainda porque, sabe como é, né?
É todo um processo. Mas Deus ta trabalhando nessa causa e, sem demora, eu vou
contar essa vitória.”
“Glória
a deus! Isso mesmo, jovem. Você vai contar essa vitória.” E pra não perder o
costume o homem lhe entrega um panfletinho dando glórias e glórias agradecendo
mais esta mentira.
Ele vai
andando, fumando o pouco que resta do cigarro, amassando o panfletinho e
seguindo sua viagem. Chega ao ponto de ônibus e se põe a esperar que ele venha,
volta a pensar nas coisas, tenta sorrir de tudo, até que:
“Ai,
parceiro, ta no dinheiro ou no riocard?” O cara surge como que do nada, assim
brotando de algum portal de dentro do poste. “Saqual é, to com um riocard aqui
e queria ver se dava pra tu me dá o dinheiro e deixar que eu passo o cartão no
ônibus pra tu.”
“Po,
cara. To com bilhete único também. Nem dá.” E segura o bolso para que as moedas
não tilintem enquanto abre caminho para o tal cara passar e ir importunar
outro.
Vem o ônibus,
ele faz sinal entra, fica em pé e começa a pensar, aliviado, descansado, só ele
mesmo e suas divagações quanto a isto e aquilo, da ordem da vida, do rumo das
coisas, das contas e tudo o mais até que:
“Primeiramente
uma boa noite a todos. Sem querer interromper o silencio da sua viagem e nem
mesmo o descanso do seu sono, né? É que eu podia ta matano, eu podia ta robano,
mas vim aqui, né, apresentar pra vocês essas deliciosas gomas de hortelã, né? O
passatempo da sua viagem, hein, alivia a tosse e melhora o hálito. Uma é
cinquenta centavos, três é um real.”